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A utilização de fermentos industriais reduz a originalidade dos queijos?

Existe uma grande discussão sobre o impacto da pasteurização do leite e do uso de fermentos industriais na autenticidade de queijos. Os queijos fabricados como leite cru e sem o uso de fermentos são considerados sensorialmente superiores, ou seja, possuem sabor e aroma mais pronunciados. A microbiota natural do leite é bastante variada e, por outro lado, os fermentos são compostos por espécies pré-determinadas, o que acabaria padronizando e restringindo a diversidade microbiana dos queijos. Este artigo tem por objetivo trazer uma reflexão técnica sobre este tema, aportando informações sobre as funções dos fermentos e outros aspectos afetam as características sensoriais dos queijos.

Para introduzir o assunto, precisamos entender o que são os fermentos industriais e quais são suas funções. Os fermentos (também chamados de cultivos, culturas iniciadoras ou starters) são compostos por microrganismos que são adicionados ao leite para iniciar o processo de fermentação. Eles são usados ​​para a produção de uma grande variedade de produtos lácteos, como queijos, iogurtes, leites fermentados, manteiga e creme. As bactérias ácido-láticas (BAL) são grupos de bactérias que têm como principal característica a produção de ácido lático a partir da fermentação de carboidratos. Por essa razão, estes microrganismos são os principais componentes dos fermentos utilizados na fabricação de derivados lácteos.

Os fermentos são culturas de microrganismos selecionados, em proporções definidas, que se multiplicam no leite e no queijo, proporcionando suas características desejadas. Sua principal função é promover uma acidificação rápida durante o processo fermentativo e, assim, garantir a segurança microbiológica do produto. Com o aumento da acidez, o pH tende a baixar e, desta forma, o meio fica impróprio ao desenvolvimento de bactérias indesejáveis, tais como, coliformes. Assim, os fermentos promovem um aumento da acidez do meio inibindo o desenvolvimento das bactérias indesejáveis.

O leite naturalmente contém microrganismos capazes de desempenhar esta função. Contudo, as bactérias lácticas originais do leite podem ser ineficazes para promover a acidificação dentro do tempo desejado. Além do mais, elas tendem a ser eliminadas pelos tratamentos térmicos aos quais o leite é submetido. Por isso, os fermentos lácticos industriais adicionados ao leite, após a etapa de pasteurização, garantem um processo de fermentação mais controlado e com resultados previsíveis.

As culturas presentes em fermentos industriais mais usadas em queijos são as mesofílicas, normalmente utilizadas na fabricação de alguns queijos frescos, bem como em queijos de massa crua e semicozida. Os fermentos mesofílicos incluem bactérias dos gêneros Lactococcus Leuconostoc. Já os fermentos termofílicos são compostos por bactérias que se desenvolvem melhor em temperaturas mais elevadas, por exemplo 42-45ºC, e geralmente são compostos por uma mistura de Streptococcus thermophilus Lactobacillus. No entanto, espécies mesofílicas e termofílicas podem ser encontradas combinadas em fermentos mistos, desenvolvidos para elaboração de alguns tipos de queijos. 

De maneira geral, Lactococcus lactis e o Streptococcus thermophilus são as culturas lácticas mais utilizadas como fermento na fabricação de queijos. Estes fermentos são chamados de fermentos primários por terem papel fundamental no início da fabricação dos queijos, sendo adicionados ao leite antes da coagulação. A maturação do leite geralmente é definida pelo tempo necessário para que a atividade bacteriana seja iniciada. Os fermentos promovem a redução do pH da massa, a qual, aliada à processos tecnológicos adequados, irão dar origem às características desejadas para cada tipo de queijo.

Os Lactococcus são os microrganismos mesofílicos mais usados para a produção de ácido nas fermentações lácteas, pois são capazes de converter rapidamente a lactose em ácido lático. São geralmente predominantes em queijos frescos, que não sofrem cozimento da massa. Sua presença é reduzida durante o processo de maturação, podendo desaparecer completamente após seis a oito semanas, dependendo do tipo de queijo. 

Já os Lactobacillus são mais tolerantes ao meio ácido. Neste grupo, estão os lactobacilos mesofílicos heterofermentativos facultativos, que utilizam outras fontes de carbono além de hexoses sendo capazes de produzir ácidos orgânicos, CO2, etanol e H2O2. Este grupo inclui Lactobacillus caseiLactobacillus paracasei Lactobacillus plantaram que não são comumente encontrados no fermento industriais, mas estão associados à fermentação secundaria, que ocorre durante a maturação. 

A diversidade bacteriana dos queijos tende a mudar durante a maturação. Alguns grupos que são predominantes no queijo recém-fabricado tendem a diminuir ou até mesmo desaparecer durante a maturação. A contagem de bactérias láticas em forma de cocos, predominantes em queijos frescos, tende a diminuir, enquanto a contagem dos bastonetes é maior em queijos maturados.

O processamento do queijo interfere significativamente na sua diversidade microbiana. Quando são realizados processos em altas temperaturas, tais como, a filagem e o cozimento da massa, os microrganismos sensíveis ao calor são parcialmente ou totalmente eliminados. O teor de sal adicionado também pode inibir o desenvolvimento de alguns microrganismos. Ou seja, as bactérias do fermento adicionado ao leite não necessariamente estarão presentes no queijo. Elas têm uma função específica no processo, porém, acabam sendo eliminadas após cumprirem seu papel. Esta morte celular pode ocorrer acompanhada de autólise e liberação de enzimas intracelulares que podem ter um efeito durante a maturação.

Durante a maturação dos queijos, os fermentos secundários (ou adjuntos) têm maior participação no processo. Estes fermentos contêm micro-organismos com a função de utilizar o ácido produzido pelas bactérias do fermento primário, gerando as seguintes alterações bioquímicas e sensoriais nos queijos: produção de CO2 (bactérias propiônicas do queijo Emmental), veios azuis (Penicillium roqueforti no queijo Gorgonzola) ou casca branca aveludada (Penicillium camemberti no queijo Camembert). 

Além dos fermentos secundários, a presença das NSLAB tem um papel muito importante nas características dos queijos. O grupo denominado NSLAB (non-starter lactic acid bacteria) é, por definição, composto por bactérias capazes de gerar ácido lático durante seu processo metabólico que esteja presente no leite e seus derivados, e que não foi adicionada através do inóculo de um fermento específico.

Este grupo microbiano deriva principalmente do leite cru, mas também pode ser oriundo do ambiente da indústria láctea, de tubulações e equipamentos de produção, bem como, de utensílios utilizados na fabricação dos queijos. Há também, a possibilidade de serem encontradas no ar do ambiente da indústria ou veiculadas pelo próprio manipulador. Algumas NSLAB podem ser resistentes ao processo de pasteurização. 

As NSLAB incluem todas as bactérias lácticas que não são adicionadas como fermento; refere-se a um grupo heterogéneo. As espécies de NSLAB presentes podem variar dependendo do ambiente em função da região, clima e estação. Os Lactobacillus são os mais frequentes, bem como, os tecnologicamente mais relevantes nas fermentações tradicionais de  queijo. São heterofermentativos facultativos e mesofílicos, fazem parte desse grupo: Lactobacillus casei, Lactobacillus paracasei, Lactobacillus rhamnosus, Lactobacillus plantarum, Lactobacillus pentosus, Lactobacillus paraplantarum, além de Leuconostoc, Weissella, Lactobacillus spp., Enterococcus spp., E. faecium, E. faecalis E. durans.

Podemos afirmar que as NSLAB compõem uma parte essencial da microbiota do queijo. Em geral, são encontradas em níveis baixos em queijos jovens (<102 UFC/g), mas sua população aumenta durante a maturação até atingir concentrações superiores a 106 UFC/g. Eles podem se tornar a microbiota dominante em algumas variedades de queijo ao passo que a população fermentadora diminui (Figura 1).

Figura 1. Tendência de comportamento do desenvolvimento microbiano do fermento e das NSLAB (non-starter lactic acid bacteria) durante a maturação de queijos. Fonte: a autora

A taxa de crescimento destas bactérias no queijo depende principalmente da disponibilidade de fontes de energia e da temperatura de maturação. A lactose residual tem sido apontada como a principal fonte de energia inicial para essas bactérias, assim como, a galactose em queijos elaborados com fermentos primários que não a metabolizam. O citrato, além dos produtos da lise celular do fermento, as glicoproteínas da membrana do glóbulo de gordura e os carboidratos da κ-caseína também foram incluídos entre as potenciais fontes de carbono, embora pouco se conhece sobre seu impacto no crescimento do NSLAB.

Algumas cepas de NSLAB podem ter influência significativa nas características organolépticas do queijo, dependendo do seu perfil enzimático, da quantidade presente e das condições de maturação. Embora exerça uma grande influência positiva na maturação de alguns queijos, estima-se que 80% dos defeitos em queijos estejam relacio­nados às NSLAB, associado a proteólise, produção de gás, olhaduras indesejadas em alguns tipos de queijos ou mesmo formando cristais de lactato na superfície dos queijos. Contudo, alguns estudos salientam que queijos com menor presença de NSLAB não desenvolvem um sabor totalmente maduro ou um perfil de aroma suficientemente complexo. 

O desenvolvimento das NSLAB durante a maturação dos queijos pode ser atribuído parcialmente à sua capacidade de usar as fontes alternativas de nutrientes disponíveis. Como a lactose no queijo é metabolizada nas primeiras semanas de amadurecimento, as NSLAB podem obter energia a partir de compostos como o ácido lático, ácido cítrico, ribose, ácidos graxos, glicol e aminoácidos. Também desempenham um papel essencial na degradação das caseínas e peptídeos. Com isso, contribuem significativamente para a liberação de aminoácidos livres e peptídeos de baixa massa molecular.

A maturação deve ser feita em condições controladas de umidade e temperatura específicas para cada tipo de queijo. Tais condições favorecem as atividades microbianas e enzimáticas desejadas, além de impedir o crescimento de microrganismos deteriorantes e patogênicos. 

Ao longo do processo de maturação, ocorrem processos físicos, bioquímicos e microbiológicos, que resultam na produção de inúmeras substâncias que se acumulam, colaborando para o sabor e aroma dos queijos. Dentre os processos bioquímicos a proteólise e a lipólise são predominantes. A caseína, principal proteína do leite, é degradada por ação enzimática em compostos menores que modificam a estrutura do queijo tornando-a mais macia e alterando o sabor do queijo. A gordura também vai sendo degradada por ação de enzimas lipolíticas, com a liberação de ácidos graxos livres que também vão conferir sabor e aroma. Podemos concluir que o processo de maturação dos queijos é um conjunto de reações lentas e delicadas que influenciam de modo direto nas características organolépticas finais do queijo.

Portanto, o uso de fermento é apenas um dos fatores que interferem nas características sensoriais dos queijos. Não podemos menosprezar a ação das NSLAB que se desenvolvem espontaneamente durante a maturação. Além disso, o controle da qualidade do leite, das condições de processamento e de maturação são fundamentais para conduzir as reações bioquímicas e processos biológicos de forma equilibrada, dando origem a queijos com as características sensoriais desejadas.

Podemos concluir que a originalidade de um queijo é composta por vários outros fatores além do uso de fermentos.  A região de produção, espécie e raça do animal, o tipo de alimentação, as condições ambientais, qualidade do leite, técnicas de obtenção, manipulação e conservação, bem como os processos de fabricação e maturação dos queijos também terão um impacto nas suas características sensoriais.

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