Resumo: Bacillus cereus é uma bactéria que desperta grande preocupação do setor laticinista. A combinação das características termodúrica (capacidade de sobreviver aos tratamentos térmicos aplicados pela indústria) e psicrotrófica (capacidade de se multiplicar em temperatura de refrigeração) denota seu grande potencial deteriorante, além do perigo que representa à saúde pública por ser uma bactéria patogênica. Em queijos, a ação de proteases e lipases por ele produzidas, provoca queda no rendimento e alterações sensoriais que provocam grandes prejuízos à indústria. Se torna necessário o estudo de práticas de controle dentro da indústria para minimizar os danos que B. cereus pode causar.
Bacillus cereus tem sido identificado como um grande problema para a indústria de laticínios em diversos países, por sua capacidade de sobreviver a pasteurização, se multiplicar em temperatura de refrigeração, produzir lipases e proteases causando problemas tecnológicos em leite e derivados, além do potencial risco à saúde humana.
Adicionalmente, B. cereus é uma bactéria patogênica que pode causar dois tipos de doenças de origem alimentar: a síndrome emética, causada pela ingestão de toxinas pré-formadas no alimento, caracterizada principalmente por náuseas e vômitos; e a síndrome diarréica, causada pela ingestão da bactéria, formação da toxina no trato intestinal provocando dores abdominais e diarréia (SENESI & GHELARDI, 2010).
Sua presença tem sido frequentemente relatada em leite e derivados lácteos, entre os quais, leite cru, pasteurizado, leite em pó, leite UHT, leites fermentados, sorvetes e em queijos.
B. cereus é uma bactéria amplamente distribuída do ambiente, sendo identificadas como as principais fontes de contaminação do leite: o contato direto ou indireto com o solo e poeira durante a ordenha, os tetos sujos e a água residual nos tanques e utensílios (VISSERS et al., 2007). A estocagem do leite cru em tanques de refrigeração pode aumentar a incidência de esporos de B. cereus no leite, considerando que o tempo e a temperatura de estocagem favorecem a sua multiplicação (SVENSSON et al., 2004). A contaminação do leite cru por esporos tem sido relatada como a principal causa de presença de B. cereus em leite processado e derivados lácteos.
B. cereus pode formar biofilmes na superfície de equipamentos e utensílios utilizados no processamento do leite, o que dificulta sua remoção durante a higienização e promove sua disseminação no leite e produtos lácteos que entram em contato com superfícies contaminadas (SALUSTIANO et al., 2009).
A indústria de lácteos deve voltar sua atenção a este micro-organismo uma vez que os esporos de B. cereus são resistentes a condições ambientais extremas, tais como, tratamento térmico (pasteurização e tratamento UHT) e desidratação (leite em pó). Quando a condição é favorável, os esporos podem germinar e se multiplicar nos alimentos processados (ABEE et al., 2011). Além disso, algumas estirpes de B. cereus podem se multiplicar em temperaturas de refrigeração, ou seja, apresentam comportamento psicrotrófico (ZHOU et al., 2010).
B. cereus apresenta forte atividade proteolítica, sendo esta mais acentuada sobre as caseínas, comparada à atividade sobre as proteínas do soro, com redução no rendimento na fabricação de queijos (MURUGAN & VILLI, 2009).
A viabilidade econômica da fabricação de queijos depende diretamente da quantidade de queijo produzida a partir de um determinado volume de leite, ou seja, do rendimento industrial. As perdas provocadas pela ação de proteases microbianas muitas vezes não são identificadas no laticínio, no entanto, representam perdas econômicas que podem chegar a 6% (CARDOSO, 2006).
Somado a isso, a degradação da caseína do leite pela ação da protease produzida por B. cereus libera peptídeos de baixo peso molecular que podem causar a formação de sabores indesejáveis nos queijos (JANSTOVÁ et al., 2006).
A formação de sabor amargo por proteases ocorre principalmente em queijos maturados, uma vez que atuam durante todo o período de maturação, representando um grande problema de qualidade nestes produtos. Já a presença de lipases produzidas por B. cereus causam a quebra da gordura acarretando na formação de ranço em queijos com alto teor de gordura e de maturação prolongada, como Emmental, Gruyère, Parmesão e também no queijo Prato (FURTADO, 2005).
Os esporos de B. cereus podem sobreviver, germinar e se multiplicar durante as etapas de processamento do queijo; no entanto sua presença é inibida após a salga e durante a maturação, devido ao conteúdo de sal, redução da Aw, baixo potencial de óxido-redução e pH do queijo maturado (RUKURE & BESTER, 2001).
A adição de bactérias láticas (culturas iniciadoras) diminui a multiplicação de B. cereus em queijos, no entanto, este efeito não é imediato, passa a ser perceptível somente após 24h de fermentação, devido a redução gradativa do pH e produção de substâncias inibitórias, como os ácidos orgânicos e peróxido de hidrogênio (WONG & CHEN, 1988).
Portanto, a presença B. cereus em queijos maturados não representa um problema para a indústria, uma vez que o processo de maturação inibe seu desenvolvimento. No entanto, para queijos frescais e fundidos, como o requeijão, as condições intrínsecas se tornam favoráveis para a multiplicação deste microrganismo. A ricota, por seu alto teor de umidade e pH pouco ácido também é propícia ao desenvolvimento de B. cereus (COSENTINO et al., 1997).
As características físico-químicas e tecnológicas (alta umidade e atividade de água, pH próximo da neutralidade, baixa concentração de sal, manipulação intensa e ausência de cura) permitem que o queijo Minas Frescal seja susceptível à contaminação por B. cereus. Considerando que B. cereus pode se multiplicar em temperatura de refrigeração sua presença em queijo Minas pode atingir a dose infecciosa (105 – 108 UFC/g) durante o prazo de validade (cerca de 10 dias).
Foi constatada a contaminação por B. cereus em queijo Minas Frescal produzido em um laticínio na região de Campinas – SP com contagens chegando a 107 UFC/g. B. cereus foi isolado em todas as etapas de produção, presente em tanques, bombas, liras, formas, mesas, bandejas, ralos e drenos, apresentando variados graus de contaminação entre os pontos de coleta. Apesar da grande disseminação dentro da indústria, o leite cru foi identificado como sendo a fonte da contaminação do queijo. Todas as cepas isoladas produziram a toxina diarréica, reforçando o risco que o queijo representa à saúde do consumidor (ROCHA, 2004).
A presença de B. cereus produtor de toxinas em queijos é relatada por outros pesquisadores (COSENTINO et al., 1997; MOLVA et al., 2009), evidenciando que os queijos podem ser causadores de doenças transmitidas por alimentos com relação a este micro-organismo.
O uso de bacteriocinas é uma alternativa eficiente para o controle de B. cereus em queijos, entre elas a enterocina produzida por Enterococcus faecalis (MUÑOZ et al., 2004), além da nisina e lisozima (LOPEZ-PEDEMONTE et al., 2003).
Culturas probióticas, como o Lactobacillus reuteri, Lb. rhamnosus e Lactococcus lactis spp diacetylactis também se mostraram eficientes no controle de B. cereus em queijos frescos (SADEK et al., 2006), no entanto, queijos probióticos ainda são raros no mercado brasileiro.
A legislação brasileira prevê padrões microbiológicos de queijos somente para Coliformes a 45 ºC, Salmonela, Estafilococus coagulase positiva e Listeria monocytogenes, sendo que os estudos são voltados principalmente para S. aureus e mais recentemente, L. monocytogenes. Ainda são escassos os dados sobre a incidência de B. cereus em queijos produzidos no Brasil, bem como sobre os problemas tecnológicos e prejuízos que este micro-organismo pode causar à indústria queijeira.
Como medida de controle de B. cereus em queijos, recomenda-se limitar a entrada de esporos deste micro-organismo na indústria, através de orientação aos produtores de leite sobre as Boas Práticas de Ordenha. A implantação dos Procedimentos Padrão de Higienização Operacional (PPHO) também se mostra indispensável para evitar a formação de biofilmes e consequentemente, a disseminação de B. cereus na indústria.
A contaminação por B. cereus em laticínios representa um sério risco à saúde do consumidor e acarreta grandes prejuízos econômicos. Daí, a importância da conscientização dos profissionais do setor, em todos os níveis, para a necessidade da implantação de programas de boas práticas de fabricação e do controle permanente dos processos e seus pontos críticos.
Maike Taís Maziero Montanhini (1); Luciano dos Santos Bersot (2)
- Tecnóloga em Alimentos. Mestre em Ciência dos Alimentos, doutoranda em Tecnologia de Alimentos, UFPR.
- Médico Veterinário. Doutor em Ciência dos Alimentos (FCF/USP). Professor Adjunto III do Curso de Medicina Veterinária da UFPR, Campus Palotina.
Artigo publicado na revista Leite & Derivados, v. 127, p. 64-69, 2011.
Referências:
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