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Desafios da legalização de queijos artesanais no Brasil

A produção de queijos artesanais faz parte da cultura gastronômica brasileira. Temos queijos artesanais com características bem diversas, produzidos com leite de diferentes espécies animais, com processos de fabricação e maturação variados. As características de cada queijo possuem um forte vínculo com as culturas regionais. Originalmente, a produção destes queijos era apenas para consumo familiar, mas a demanda dos consumidores por alimentos artesanais levou muitos produtores a comercializarem seus queijos. 

Algumas pessoas condicionam a produção artesanal ao uso de leite cru. Contudo, esta é uma definição equivocada, pois queijos industriais também podem ser fabricados a partir de leite cru, bem como, queijos artesanais podem ser produzidos com leite pasteurizado. Na verdade, o que caracteriza o queijo artesanal é a elaboração por métodos tradicionais, com vinculação e valorização territorial, regional ou cultural, conforme protocolo de elaboração específico estabelecido para cada tipo e variedade, com emprego de boas práticas agropecuárias e boas práticas de fabricação. 

Geralmente, a produção de queijos artesanais é feita em pequena escala, com processos predominantemente manuais e menor emprego de tecnologia. O queijo artesanal não é um produto padronizado, podendo sofrer alterações em função de variações na composição do leite, temperatura ambiente e processos de fabricação. Isso não significa que a produção artesanal pode ser feita sem nenhum controle de qualidade ou sem seguir procedimentos. Pelo contrário, os produtos artesanais têm por obrigação o atendimento à legislação assim como qualquer outro alimento, para não representarem riscos à saúde do consumidor.

Contudo, é fato que muitos produtores artesanais enfrentam dificuldades para atender todas as exigências que a legislação impõe para garantir a segurança dos alimentos. As exigências regulamentares, tais como instalações adequadas, análises do leite e dos produtos acabados, a elaboração de manuais, documentos e registros, implementação das boas práticas de fabricação etc., exigem significativo investimento, conhecimento técnico e tempo. Muitas vezes o pequeno produtor nem possui recursos para elaborar a documentação necessária (computador, internet, impressora, etc.). 

Frequentemente, as instalações disponíveis não são adequadas e exigem reformas significativas. É importante deixar claro que a produção artesanal não pode ser feita no ambiente doméstico. São necessárias instalações próprias para este fim, com um fluxograma que evite contrafluxos, com superfícies impermeáveis que permitam a fácil higienização, equipamentos e utensílios adequados para a fabricação de alimentos, entre outras exigências.  

O aprimoramento e legalização passiva da produção artesanal é um grande desafio social e deveria ser visto como uma prioridade pelos consumidores e pelo governo. A inspeção e a fiscalização devem ter natureza prioritariamente orientativa, instruindo e incentivando o produtor a buscar as adequações necessárias para o atendimento da legislação. Quando a fiscalização assume apenas o caráter punitivo acaba coagindo o produtor a buscar o caminho da clandestinidade. 

Muitos esforços vêm sendo feitos para que a produção artesanal seja vista de forma distinta a produção industrial, assim como, que as exigências sanitárias sejam compatíveis com esses processos, sem comprometer a qualidade do produto. Seguindo estes objetivos, foram publicados a Lei nº 13.680, de 14 de junho de 2018 que dispõe sobre o processo de fiscalização de produtos alimentícios de origem animal produzidos de forma artesanal – Selo Arte, e o decreto nº 11.099, de 21 de junho de 2022, que dispõe sobre a elaboração e a comercialização de produtos alimentícios de origem animal produzidos de forma artesanal.

De acordo com estas legislações, as exigências para o registro do estabelecimento e do produto deverão ser adequadas às dimensões e às finalidades do empreendimento, tornando simplificados os procedimentos de registro. Ainda assim, muitos produtores artesanais relatam dificuldades em se adequar e obter o registro do estabelecimento junto aos órgãos competentes. 

Apenas para citar um exemplo emblemático, há casos relatados nos quais a fiscalização exigiu a aquisição de equipamento para análise de crioscopia do leite produzido por produtores de leite que fabricam queijos. O crioscópio é um equipamento usado para identificar a adulteração do leite por adição de água. Ou seja, qual sentido faria o produtor fraudar o próprio leite para produzir queijo sendo que essa água adicionada não ficaria no queijo, sendo eliminada juntamente com o soro? 

Após todo o esforço e investimento feito pelos produtores para atendimento às exigências legais, existe outro gargalo que costuma dificultar o início das suas atividades: a liberação do certificado de inspeção. Em algumas regiões, o tempo de espera é de mais de 12 meses. Então, como um pequeno produtor rural que investiu seus escassos recursos em um negócio pode sobreviver tanto tempo sem renda aguardando a liberação da licença? A falta de funcionários e sobrecarga de trabalho, somadas a conhecida burocracia nos órgãos públicos, comprometem a celeridade do processo e, em alguns casos, acaba levando o produtor a começar a produzir antes da liberação do processo. Com isso, o produtor se expõe à fiscalização e a própria segurança do consumidor acaba comprometida.

            Outra questão que deve ser considerada é com relação ao registro dos produtos. Muitas vezes, queijos artesanais apresentam particularidades em seu processo de fabricação. Isso os distinguem dos produtos previstos nos Regulamentos Técnicos de Identidade e Qualidade, dificultando o processo de registro. Quando se trata de um queijo autoral, com características e denominação única, o é ainda mais complicado. Para esses casos, é necessária a elaboração de um dossiê com as especificações do produto e análises de composição físico-química e microbiológica para enquadramento do produto, o que representa mais uma limitação aos produtores artesanais, dada a dificuldade de conhecimento técnico.

É imprescindível que a produção de alimentos de origem animal seja inspecionada pelos órgãos competentes, uma vez que estes produtos podem transmitir zoonoses e outras doenças de origem alimentar. Por isso, é necessário oferecer suporte técnico aos produtores artesanais, para que estes produzam alimentos seguros e legalizados, fomentando a cadeia produtiva do leite e gerando oportunidades aos pequenos produtores. É preciso ter mais diálogo entre os produtores artesanais e os agentes fiscalizadores, estreitar os laços entre as partes, em uma linguagem acessível e conduta humanizada. Criando uma relação de confiança mútua, o trabalho em conjunto com certeza dará bons frutos. Ou melhor, bons queijos. E o consumidor será o principal beneficiado. 

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